Há lugares no mundo onde a felicidade está condenada.
Cinzento. Em toda a sua volta, um cinzento mar de pedras.
Cinzento. Um cinzento tão morto e frio que destruíra todas as outras cores em redor. Ou talvez elas simplesmente não lá estivessem.
Sim, pois se ele olhasse para as suas mãos, veria a pele pardacenta. Pardacenta como a sua picareta, pardacenta como os seus companheiros.
E foi neles que se focou. Nos crânios carecas, nos rostos vincados prematuramente, nos membros cansados, no tronco magro, e acima de tudo, nos olhos encovados.
Se os olhos eram o espelho da alma, então eles não tinham alma.
Como que traído pela curta divagação, falhou o próximo golpe da picareta.
A ínfima quebra do ininterrupto tinir de ferro em pedra transferiu todos os olhares, mortos e vivos, para si.
Os mortos surpreendiam-no. E os vivos aterrorizavam-no. Não apenas o olhar, mas também as barrigas gordas cuja pele oleosa era espremida em enormes rugas, que quase engoliam as apertadas correias causadoras do efeito. E também as caras esculpidas em fealdade, de narizes esborrachados, triplos queixos, orelhas rasgadas e bocas escancaradas de dentes partidos e podres. E principalmente os machados riscados que abanavam nas tangas sujas, a única peça de indumentária que aquelas criaturas, os Guardas, portavam.
— Deixaste cair a picareta, escravo. — Constatou um dos Guardas, surpreso, numa voz rouca de desuso.
O coração do escravo retumbou numa explosão de medo e euforia. Nos momentos em que permitira a mente divagar, sonhara com isto. Com atenção, com importância. E finalmente, pela primeira vez, tinha toda a atenção centrada em si.
Não fosse o terror, poderia ter desfrutado da sensação. Mas a euforia apenas servia para lhe comprimir as cordas vocais, espremendo a resposta para fora da sua garganta num arquejo trémulo:
— Sim.
— Ele fala. — Falou outro Guarda, indistinguível de todos os outros.
— Olhem para o rosto dele. — Murmurou um terceiro.
— É... diferente dos outros. — Afirmou ainda outro.
Como se o último comentário fosse uma ordem de execução, cem machados brandiram-se no ar.
Entre uma batida de coração e um inspirar instintivo, o escravo captou um vislumbre das suas feições, espelhadas no metal de um dos machados.
Ele era diferente dos outros... o nariz era maior, a boca mais pequena, os maxilares mais pronunciados, as sobrancelhas menos carregadas e os olhos maiores e mais vivos.
Um sorriso transfigurou a sua expressão, auxiliado pelo cerrar dos olhos que antecipava a lâmina de um machado com satisfação resignada.
Mas o silvar da lâmina a cortar o ar se deixou ouvir, o escravo sentiu algo mais juntar-se à fileira de emoções em desuso.
Vontade de viver.
Desviou-se no último momento, não cedendo ao machado mais que uma laceração superficial no seu pescoço. Recuou um passo, com uma esperança deslocada na sua situação.
Ou talvez ela não estivesse assim tão deslocada, pois excepto o seu, todos os olhares estavam agora fixos em algo ao seu lado.
Incerto ao que sentir quanto à perda de atenção dos companheiros e inimigos, o escravo seguiu o trilho invisível dos olhares.
E o seu coração pareceu tentar escapar-lhe pela garganta, qual foi o choque, o esplendor, o fascínio, da visão que não se sentia arrependido de partilhar, tão única e surreal que era.
O sangue roubado pelo machado polvilhara a rocha que ainda há pouco era minada afincadamente, com inúmeros pontos vermelhos. Um desses pontos, uma gota maior que as outras, escorreu, marcando o seu trajecto de delicioso vermelho.
Vermelho, vermelho, vermelho. Um vermelho tão vivo e tão belo, um vermelho que os enchia de sensações há muito esquecidas, ou nunca sentidas. Naquele momento, o vermelho era tudo, o vermelho era a vida de todos e cada um, o vermelho unia-os inconscientemente.
E destoando de novo, o escravo que originara tudo aquilo resistiu à hipnose da cor com todas as suas forças. Pois no fundo da sua mente, num qualquer cofre portador de memórias ou sonhos, algo o enchia de promessas. Promessas de algo melhor que aquele vermelho.
Era difícil de imaginar, mas era tão bom apenas fazê-lo... Quase o distraía do vermelho. E se fosse verdade, como seria provar?
O libertar dos seus olhos da rocha acinzentou cruelmente o seu mundo.
Mas não o dos outros, constatou, ao começar a caminhar.
A caminhada depressa se transformou numa marcha apressada, num correr lento, numa corrida.
Desenfreada, desesperada, inspirada. Os seus ombros embatiam ocasionalmente em alguém, os seus pés escorregavam em outros.
Ainda ignorado, começou a trepar a colina que antecedia o muro agora vazio.
E foi contra esse mesmo muro que chocou. Os dedos rasparam a pedra dura, procurando algo em que se fincar. Eventualmente encontraram, ou melhor, cavaram. Pois o muro já estava velho e a cair, até ao momento, os guardas nunca haviam precisado dele.
O escravo que estava prestes a deixar de o ser içou-se, e com o recém descoberto apoio para os pés, começou a trepar.
Desiludiu-se com a visão que do topo do muro se lhe deparava. A paisagem era tão dura e pardacenta como a pedreira. Mas isso não chegava para o fazer desistir.
Saltou, amortecendo a queda com uma cambalhota desajeitada.
Por muito distante que o aparente cinzento horizonte fosse, alcançá-lo-ia.
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Um trabalho já com algum tempo que se encontra inacabado. Por outro lado, prende-se a vontade de deixar-lo mesmo assim com a questão no ar. Será acreditar que é sempre possível uma mudança ou apenas um desejo de um tolo?