28.2.10

O Escravo

Há lugares no mundo onde a felicidade está condenada.

Cinzento. Em toda a sua volta, um cinzento mar de pedras.
Cinzento. Um cinzento tão morto e frio que destruíra todas as outras cores em redor. Ou talvez elas simplesmente não lá estivessem.
Sim, pois se ele olhasse para as suas mãos, veria a pele pardacenta. Pardacenta como a sua picareta, pardacenta como os seus companheiros.
E foi neles que se focou. Nos crânios carecas, nos rostos vincados prematuramente, nos membros cansados, no tronco magro, e acima de tudo, nos olhos encovados.
Se os olhos eram o espelho da alma, então eles não tinham alma.
Como que traído pela curta divagação, falhou o próximo golpe da picareta.
A ínfima quebra do ininterrupto tinir de ferro em pedra transferiu todos os olhares, mortos e vivos, para si.
Os mortos surpreendiam-no. E os vivos aterrorizavam-no. Não apenas o olhar, mas também as barrigas gordas cuja pele oleosa era espremida em enormes rugas, que quase engoliam as apertadas correias causadoras do efeito. E também as caras esculpidas em fealdade, de narizes esborrachados, triplos queixos, orelhas rasgadas e bocas escancaradas de dentes partidos e podres. E principalmente os machados riscados que abanavam nas tangas sujas, a única peça de indumentária que aquelas criaturas, os Guardas, portavam.
 — Deixaste cair a picareta, escravo. — Constatou um dos Guardas, surpreso, numa voz rouca de desuso.
O coração do escravo retumbou numa explosão de medo e euforia. Nos momentos em que permitira a mente divagar, sonhara com isto. Com atenção, com importância. E finalmente, pela primeira vez, tinha toda a atenção centrada em si.
Não fosse o terror, poderia ter desfrutado da sensação. Mas a euforia apenas servia para lhe comprimir as cordas vocais, espremendo a resposta para fora da sua garganta num arquejo trémulo: 
— Sim.
— Ele fala. — Falou outro Guarda, indistinguível de todos os outros. 
— Olhem para o rosto dele. — Murmurou um terceiro. 
— É... diferente dos outros. — Afirmou ainda outro.
Como se o último comentário fosse uma ordem de execução, cem machados brandiram-se no ar.
Entre uma batida de coração e um inspirar instintivo, o escravo captou um vislumbre das suas feições, espelhadas no metal de um dos machados.
Ele era diferente dos outros... o  nariz era maior, a boca mais pequena, os maxilares mais pronunciados, as sobrancelhas menos carregadas e os olhos maiores e mais vivos.
Um sorriso transfigurou a sua expressão, auxiliado pelo cerrar dos olhos que antecipava a lâmina de um machado com satisfação resignada.
Mas o silvar da lâmina a cortar o ar se deixou ouvir, o escravo sentiu algo mais juntar-se à fileira de emoções em desuso.
Vontade de viver.
Desviou-se no último momento, não cedendo ao machado mais que uma laceração superficial no seu pescoço. Recuou um passo, com uma esperança deslocada na sua situação.
Ou talvez ela não estivesse assim tão deslocada, pois excepto o seu, todos os olhares estavam agora fixos em algo ao seu lado.
Incerto ao que sentir quanto à perda de atenção dos companheiros e inimigos, o escravo seguiu o trilho invisível dos olhares.
E o seu coração pareceu tentar escapar-lhe pela garganta, qual foi o choque, o esplendor, o fascínio, da visão que não se sentia arrependido de partilhar, tão única e surreal que era.
O sangue roubado pelo machado polvilhara a rocha que ainda há pouco era minada afincadamente, com inúmeros pontos vermelhos. Um desses pontos, uma gota maior que as outras, escorreu, marcando o seu trajecto de delicioso vermelho.
Vermelho, vermelho, vermelho. Um vermelho tão vivo e tão belo, um vermelho que os enchia de sensações há muito esquecidas, ou nunca sentidas. Naquele momento, o vermelho era tudo, o vermelho era a vida de todos e cada um, o vermelho unia-os inconscientemente.
E destoando de novo, o escravo que originara tudo aquilo resistiu à hipnose da cor com todas as suas forças. Pois no fundo da sua mente, num qualquer cofre portador de memórias ou sonhos, algo o enchia de promessas. Promessas de algo melhor que aquele vermelho.
Era difícil de imaginar, mas era tão bom apenas fazê-lo... Quase o distraía do vermelho. E se fosse verdade, como seria provar?
O libertar dos seus olhos da rocha acinzentou cruelmente o seu mundo.
Mas não o dos outros, constatou, ao começar a caminhar.
A caminhada depressa se transformou numa marcha apressada, num correr lento, numa corrida.
Desenfreada, desesperada, inspirada. Os seus ombros embatiam ocasionalmente em alguém, os seus pés escorregavam em outros.
Ainda ignorado, começou a trepar a colina que antecedia o muro agora vazio.
E foi contra esse mesmo muro que chocou. Os dedos rasparam a pedra dura, procurando algo em que se fincar. Eventualmente encontraram, ou melhor, cavaram. Pois o muro já estava velho e a cair, até ao momento, os guardas nunca haviam precisado dele.
O escravo que estava prestes a deixar de o ser içou-se, e com o recém descoberto apoio para os pés, começou a trepar.
Desiludiu-se com a visão que do topo do muro se lhe deparava. A paisagem era tão dura e pardacenta como a pedreira. Mas isso não chegava para o fazer desistir.
Saltou, amortecendo a queda com uma cambalhota desajeitada.
Por muito distante que o aparente cinzento horizonte fosse, alcançá-lo-ia.

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Um trabalho já com algum tempo que se encontra inacabado. Por outro lado, prende-se a vontade de deixar-lo mesmo assim com a questão no ar. Será acreditar que é sempre possível uma mudança ou apenas um desejo de um tolo?

17.2.10

Tracey is WRONG

 

Lamento pela pequena nerdice, mas não resisti.

13.2.10

Emaranhar

Sinto-me saudoso. 
Saudoso de um sitio ao qual nunca pertenci verdadeiramente, mas que me é tão familiar.
Saudoso de histórias que nunca foram as minhas, mas é como se as tivesse vivido. 
Saudoso de ficar preso, de ficar emaranhado pela minhas origens.

Sem mais rodeios, eis o motivo de tanto saudosismo:


Nasci e sempre vivi dentro da zona suburbana de Lisboa. Foi aqui que cresci, que me ambientei, que estabeleci as minhas primeiras amizades. Contudo, mesmo apesar destes factos, o legado de pertencer a uma família fortemente beirã sempre ocupou uma parte significativa de mim.

Vejamos que numa idade mais tenra, é o género de coisas que nem se perde verdadeiramente tempo a reflectir. Contudo, já com mais alguns anos em cima da espinha, e com mais alguma sensatez desde então (espero eu), existe todo um conjunto de pequenos detalhes que começam a chamar finalmente a atenção para estas particularidades na nossa história.

Um evento desses aconteceu-me há uns tempo, numa ocasião onde um velho amigo meu passou de visita por minha casa. Como seria de esperar, foi uma oportunidade para colocar conversa em dia e bem, quando damos por nós, já se estava em cima da hora de jantar. Convido o amigo para ficar para comer e ele aceita, como tantas outras vezes que o tinha feito, demasiadas para ter ideias de uma conta. Chega a hora da refeição e, já sentados, a minha mãe coloca no centro da mesa um tabuleiro enorme de maranhos, ao qual o meu amigo deita uma olhar desconfiado. O diálogo que se seguiu foi algo deste género:

Eu: "Olha lá banana, podias ter dito que não gostavas de maranhos."
Ele: "Ah! É assim que se chama? Nunca vi isto pela frente pá."
Eu: "Não acredito. Estás a gozar!"

Na verdade já estava tão habituado ao ver um maranho no prato, para mim já era algo tão banal que tal não foi a minha incredulidade a encontrar alguém que nunca tivesse visto sequer um, como passear pela rua e dar de repente com alguém que ainda acredita-se que a terra era plana. Ora bem, um maranho na verdade não é mais  que um enchido muito típico da Beira Baixa, na qual a um bucho (estômago) de uma cabra é colocado lá dentro arroz, carne, eventualmente presunto, e um forte condimento de hortelã para mais tarde levar a cozer.

Devido ao facto de todos os ingredientes estarem "presos" dentro do estômago, deriva o nome da especialidade, explicando igualmente uma expressão muito comum da região, quando se avisa alguém para "não se deixar emaranhar". Enfim, verdade seja, depois do meu amigo provar (e gostar) do maranho, nunca mais olhei para um como uma simples refeição. Abrindo-me os olhos também para outros detalhes, chamem-me maluco, mas além do sabor muito próprio que aconselho a todos a provar, sabe-me sempre a algo mais. 

Sabe-me a parte da minha história. E sinto saudades de voltar a reviver-la!

11.2.10

Quando o Mário e o Luigi dão a curva errada...

... e vão parar a Vice City, a cidade do GTA onde TUDO acontece, dá-se isto:



Para os mais despistados, a referência que se dá no final a Racoon City diz respeito à cidade da sequela do Resident Evil.

6.2.10

Brincar com a fé

Devo dizer que por momentos fiquei seriamente na dúvida de colocar aqui ou não este tópico. Mexer com a religião ou com as crenças de qualquer pessoa tem sempre muito que se lhe diga. Sendo uma linha tão fina, e facilmente transgredivel mesmo que às vezes sem verdadeiras intenções de o fazer, acho importante destacar desde cedo que o objectivo deste post não é o de ofender ninguém e que lamento se alguém sentir-se incomodado perante o assunto.

Ora bem, há coisa de poucos dias deparei-me com este mini-jogo denominado por Faith Fighter. Com um misto de incredulidade e algum riso, experimentei o jogo para encontrar uma versão semelhante ao velho Mortal Kombat, num confronto entre as figuras icónicas de cada uma das religiões com mais seguidores no mundo. Cada personagem do jogo tem acesso a um conjunto de habilidades únicas, quase todas elas alusivas a conceitos ou dogmas associados à religião em causa (veja-se a imagem abaixo, onde um Jesus atira um projéctil kamehameha em forma de pomba do espírito santo a um Buddha que lança uma roda kármica).


Contudo, após o tempo de jogo, surge-me uma forte questão: até que ponto um jogo deste género, que mexe com fortes conteúdos religiosos, é verdadeiramente inofensivo ou ofensivo de modo a permitir, suponhamos, a sua comercialização? 
Por um lado, lendo o aviso à entrada do jogo, reconheço os objectivos dos seus criadores: mostrar aos jogadores como as religiões e as representações sagradas são frequentemente utilizadas por motivos para inflamar e justificar o conflito entre as diferentes nações ou pessoas. É uma crítica social, utilizando talvez mecanismos pouco habituais mas que tem o seu interessante ponto de vista.

Depois existe o aspecto das figuras que aparecem no jogo. Falando pelo menos na imagem de Jesus Cristo, não foi a primeira e não será certamente a ultima vez que a sua figura é utilizada em diferentes manisfestações artísticas e culturais, seja ela no cinema, literatura, pintura, teatro,etc... Sabendo que os resultados destas manifestações têm sido mais ou menos polémicas, variando pela sua qualidade e impacto na sociedade, o que tornaria um jogo deste género tão diferente aos casos anteriores?

Contudo, no outro prato da balança, temos a sociedade de hoje, num período histórico onde o confronto do mundo ocidental e oriental está tão aceso, um retorno à época das guerras santas e das velhas cruzadas. E veja-se o caso europeu, no conflito que tem sido para cada país da comunidade europeia a criação de um estado laico onde a diversidade cultural e religiosa seja aceite. Não parece-me que um jogo do tipo puxe muito pela compreensão das diferentes partes.

Mais estranho que isso, como é possível conseliar a noção de dogma e a interactividade de um jogo de computador, sem rondar o ridículo? A realização dos próprios milagres, lidar com personagens que poderiam ser interpretadas como mártires, poder dar a hipótese ao jogador de alterar a própria história da figura religiosa em foco, a ideia da existência de um "Game Over"...

Não sei, mas parece-me que todos os pequenos pormenores tornar-se-iam em pouco tempo num verdadeiro barril de pólvora. Pessoalmente, espero que seja uma batalha que a indústria dos videojogos tenha o bom senso de manter-se longe, ao contrário deste mini-jogo. Senão seria blasfémia. E das grandes!